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O arquiteto comunista que fugia do avião
Fez os primeiros esboços do hotel em Paris, ao fim de 24 horas de trabalho e depois de ter visto imagens tiradas por aviões de guerra americanos. A história do hotel português de Niemeyer.
Ana Taborda
Dois dias depois de a lua de mel do filho mais novo ter começado, António Barreto fez um telefonema que não dava margem para grandes hesitações: “Vem para a Madeira. Comprei um casino.” Foi assim que José, um dos seus 10 herdeiros, e a mulher, Dina, voaram para uma ilha até aí desconhecida da família indiana que a partir de Moçambique se transformara no maior exportador de madeiras de Angola, com mais de 60% do mercado.
A piscina infinita e a ligação ao mar foi repetida noutros projetos de Niemeyer, como o Museu de Arte Contemporânea de Niterói
Ricos, os Barreto compraram um casino que nunca tinham sequer visitado – e que em 1965 tinha mais dívidas do que clientes. Depois, voltaram a arriscar: para desenvolver o projeto de um novo casino, hotel e auditório (o atual Pestana Casino Park Hotel), convidaram o arquiteto brasileiro Óscar Niemeyer, que morreu há 10 anos. “Gostava que apreciassem um pouco, caros leitores, o arrojo, a visão, a coragem que constituía, para aqueles empresários, pensarem sequer, em pleno Portugal salazarista, num convite a um comunista”, conta Carlos Oliveira Santos no livro, apresentado no próximo dia 18 no Museu dos Coches, em Lisboa.
O primeiro encontro entre os muito ricos, “encasacados e engravatados” Barreto e um Niemeyer “ao seu estilo, descamisado” aconteceu no Estoril, meses depois. Durante o jantar, o arquiteto viu pela primeira vez plantas do terreno e fotografias aéreas tiradas por aviões de guerra americanos durante a Segunda Guerra Mundial.
Os Barreto começaram por comprar 40% da Sociedade de Investimentos Turísticos da Ilha da Madeira. Depois, a totalidade
Niemeyer aceitou a encomenda e marcou um segundo encontro em Paris onde fez os primeiros esboços do projeto, cinco folhas manuscritas e desenhadas pelo próprio. Eurico Barreto, outro dos irmãos, assistiu a tudo. Ao fim de 24 horas, o arquiteto que desenhou Brasília, parou e disse: “‘Que beleza! Puta que pariu, a Natureza.’ Eis assim, um novo Niemeyer”, conta o livro de Carlos Oliveira Santos.
O projeto ocupou, entre outros, os terrenos da Quinta da Vigia, onde a Imperatriz Elisabeth, a famosa Sissi, se exilou em 1869, cansada da sogra e do marido, depois de fugir num veleiro rumo à Madeira.
Um dos primeiros problemas era, claro, o financiamento da obra, cujos custos não paravam de derrapar. Sem poder transferir dinheiro das colónias para a metrópole (era proibido), os Barreto pediram um empréstimo bancário a um sistema financeiro que não primava pela agilidade – a Caixa Geral de Depósitos demorou 18 meses a avaliar o dossiê.
Havia outra dificuldade: exilado do seu país e cheio de trabalho, Niemeyer não tinha tempo para acompanhar de perto todos os progressos da obra, que demorou seis anos a começar a ser construída. Até porque havia duas agravantes: o arquiteto recusava quase sempre andar de avião e as chamadas telefónicas para a Madeira pediam-se ao nascer do sol mas podiam só acontecer ao meio-dia.
Foi assim que surgiu um novo nome: Alfredo Viana de Lima, o arquiteto que em 1968 Niemeyer convidou para colaborar no projeto. E a ideia – completamente infundada, defende Carlos Oliveira Santos – de que Niemeyer tinha renegado a obra. No livro, o autor publica duas cartas de 1973 o que demonstra, defende, “o pleno e prolongado envolvimento do arquiteto brasileiro”.
Numa das cartas, no fim, a seguinte nota: “A peça de teatro que escolhemos é moderna, de putaria.” Nas plantas, desenhadas por Niemeyer, há “atores, homens e mulheres, nus, pares copulando, foice e martelo”.
Uma inauguração de três dias
O projeto inicial tinha 200 quartos, mas o Governo exigiu 300 e Niemeyer acabaria por projetar 400 e um edifício com 38 mil metros quadrados e poucos pilares. “Quando um edifício normal tem 20 a 30 pilares, aqui é o contrário: são quatro edifícios em cima de um pilar.”
Antes de comprarem a totalidade da Sociedade de Investimentos Turísticos da Ilha da Madeira, os Barreto dividiam o projeto com uns sócios alemães “que iam aos detalhes do que deveriam ser coisas como trincos das portas, comutadores de luzes ou gavetas de móveis”.
Com o primeiro pilar colocado em 1973 e 500 trabalhadores, as greves aconteciam a qualquer momento e as inaugurações foram sendo adiadas. Em 1974 abriu o casino, num edifício ainda em obras, a 3 de outubro de 1976 os 400 quartos e só em 1979, já com mais estabilidade política, uma festa de três dias celebrava o grandioso hotel hoje propriedade do Grupo Pestana.
“Ao lado de José Barreto estava a esposa, Dina, cuja lua de mel, há 13 anos, foi perturbada por esta saga, que ela passou a viver como o marido. Seu filho André faz-lhe a justa homenagem: ‘À minha mãe, que acordava à noite para ir ver a colocação de mais uma laje no edifício e que alterou por completo a sua vida para vir para cá morar, nunca a História lhe fará justiça pela dedicação.’”
Os primeiros Pestana
O maior império hoteleiro nacional começou na Madeira
Nos anos 60, Manuel Pestana inaugurou em Maputo um enorme edifício, tão grande como o Ritz lisboeta, que batizou de Funchal, uma homenagem à sua terra, conta Carlos Oliveira Santos. Em 1976, o filho, Dionísio, chegou à Madeira para estagiar no Sheraton. Foi nesta ilha que compraram os dois primeiros hotéis, o Atlântico e o Pestana Casino Park Hotel – hoje têm 100, em 16 países.
Niemeyer
O livro tem um testemunho inédito do seu bisneto, Paulo Niemeyer. “Introduziu nesta sua arquitetura uma grande marquise e uma piscina infinita, novidade na época”
Os documentos do livro
Niemeyer formalizou o seu envolvimento no projeto em papel de carta do Hotel Ritz. Há textos e desenhos de 1966 a 1973, o que prova o envolvimento